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Novidades Literatura portuguesa

Pessoa, Fernando. Poemas de Fernando Pessoa. Visão, Jornal de Letras Artes e Ideias, Paço de Arcos, 2006

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Selecção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço.

2ª edição

221 pp. ; 20 cm

 

Fernando Pessoa, Lisboa, 1888 - Lisboa, 1935

O mais universalizado e comentado dos poetas portugueses desde Camões, o mais influente, o mais lido, o mais permanentemente intrigante, apesar das suas profusas «explicacões», ou voluntariamente oferecidas, ou dadas a pedido expresso de terceiros, Fernando Pessoa, poeta bilingue, cidadão português ambíguo porque, no fundo, eterno estrangeiro em toda a parte, há-de continuar a ser, por muitos e bons anos, o pretexto para uma bibliografia abundante e de qualidade variada: desde a inevitável e volumosa tese de doutoramento que poderá ou não acrescentar alguma coisa à compreensão profunda do poeta, até à delirante descoberta biográfica que há-de pretender demonstrar ter o poeta pertencido, afinal, no sector do vigor sexual, à categoria conhecida do «português valente» e, está claro, imbatível. Pessoa tem dado, dá e continuará a dar para tudo. E também, poucas vezes, para algum estudo de facto iluminante ou para alguma criação – a pretexto de ou a propósito de – realmente fecunda. Já alguém o considerou o homem mais complexo que jamais existiu, o que seria verdade se uma tal afirmação pudesse, algum a vez, ser verdade. Mas foi talvez o homem que, de forma mais explícita e programática, mais se apresentou complexo e assumiu, quase pedagogicamente, essa complexidade.

Nascido em Lisboa, em 13 de Junho de 1888, o ano de Os Maias de Eça e de A Menina Júlia de Strindberg, e falecido, 47 anos depois, em 30 de Novembro de 1935, a vida do Pessoa consistiu, por assim (pessoanamente) dizer, em não haver vida: se por vida se entender um conjunto de acontecimentos mais ou menos visíveis e mais ou menos ruidosos. Não casou, não teve filhos, não é mesmo certo que tenha praticado, com alguma convicção, aquele acto de que pode resultar o nascimento de filhos, não teve emprego certo, não teve, tirando Mário de Sá-Carneiro, amigos que se pudessem considerar «íntimos», não concluiu um curso superior, não viajou, depois do seu regresso a Lisboa que se seguiu à estada (não por si determinada), de alguns anos, em Durban; a sua vida foi, vastamente, uma sucessão ininterrupta de não aconteceres, só dramaticamente entrecortados, uma vez pelo suicídio de Sá-Carneiro, acontecido à sua revelia. Bebeu muito – alguma coisa havia de ter feito em excesso.

O pai, Joaquim de Seabra Pessoa, era um pequeno funcionário, mas inteligente, lido e musicalmente dotado de cultura suficiente para se dedicar à crítica de música; a mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, era de boa cepa açoriana e recebera refinada educação.

O pai faleceu em 1893, tinha o futuro poeta 5 anos. Dois anos depois (1895) a mãe casa, em segundas núpcias, com João Miguel Rosa, cônsul português em Durban, a ele se indo juntar no ano seguinte. Entre 1896 e 1905, Fernando Pessoa faz os seus estudos em escolas inglesas (High School), recebendo, em 1904, o Prémio Rainha Vitória por um pequeno ensaio em inglês, como parte do exame de admissão à Universidade do Cabo. Em Agosto de 1905, regressa sozinho a Lisboa para frequentar o Curso Superior de Letras da Universidade de Lisboa. É sol de pouca dura, vindo a abandonar o referido curso ao fim de poucos meses. Transformara-se, assim, num duplo estrangeiro: um português atirado para uma África do Sul de língua inglesa (Natal), dando lugar, anos depois, a um adolescente de língua inglesa desaguando numa Lisboa de língua portuguesa (em 1905). Durban tinha-lhe sido território estrangeiro; Lisboa era agora, por sua vez, território estrangeiro. A vida, o amor, a amizade, a língua, a realidade do mundo, a literatura, iam ser, pela vida fora, territórios estrangeiros, não-evidências a investigar. Nada lhe seria nunca dado numa bandeja, com o fulgor das evidências que se nos impõem. Tudo tinha sido, era, ia ser, motivo de assombro. Mais tarde, em apontamentos íntimos, não publicados, ele próprio acentuará esta sua capacidade de assombro que era também uma incapacidade de se deixar visitar por evidências que o são só dos outros: «O facto assombroso – o único facto real –, o de as coisas existirem, o de alguma coisa existir, o de o ser ser, é a alma do fôlego de todas as artes [...] todo o génio (qualquer ideia de génio) é o renascimento do assombro. Na alma, aceitar é perder.» Na perpétua exploração desse assombro estará a raiz da sua prodigiosa produção em verso e em prosa, prosseguida nos intervalos (alongados) da sua mais ou menos errática profissão de correspondente comercial em línguas estrangeiras (inglês, sobretudo). Prodigiosa, em quantidade e variedade: «A variedade», dirá ele algures, «é a única desculpa para a abundância. Ninguém deveria deixar escritos vinte livros diferentes a não ser que conseguisse escrever como vinte homens diferentes. As obras de Victor Hugo enchem cinquenta volumes avantajados, no entanto, cada um dos volumes, quase cada uma das páginas, contém o Victor Hugo inteiro. As outras páginas somam-se como páginas, mas não como génio. Não havia nele produtividade mas simplesmente prolixidade. [...] Se um homem conseguir escrever como vinte homens diferentes, ele será vinte homens diferentes [...] e os seus vinte livros estarão em ordem.» Eis, em poucas palavras, a «justificação» da sua famosa «invenção» dos heterónimos, invenção que não foi, como se sabe, sua, embora ele a tenha levado a um tal paroxismo de intensidade e explicitação que, de algum modo, a fez nova e, por aí, a fez sua. A ideia do heterónimo encontra-se já implícita na «imitação» ou fingere, palavra latina de grego e aristoteliano sabor, e, numa das suas cartas, Byron não anda muito longe da teoria da multiplicação do eu, quando diz: «[...] se me conheço, deveria dizer que não tenho de todo personalidade... Sou tão mutável, sendo tudo à vez e nada por muito tempo – sou uma tal mélange de bem e de mal, que seria difícil descrever-me». Por outro lado, Stendhal, Kirkegaard, Eça de Queirós (com a criação de Fradique Mendes) e, já mais próximo de nós, Valery Larbaud e Antonio Machado recorreram ao uso do heterónimo, embora não tenham inventado o vocábulo. Fernando Pessoa, repete-se, até pela multiplicação quase cancerosa que deu à personalidade, criando cerca de trinta diferentes personae, de vária importância, deu estatuto adulto à invenção e iluminou-a com uma intensidade capaz de nos fazer ter dela uma espécie de consciência nova, o que levaria John Pilling a afirmar ser o autor de Mensagem «o mais múltiplo de todos os poetas modernos». Por outro lado, teve o cuidado meticuloso e, pelos vistos, frutuoso de mitificar, em devido tempo, a sua própria invenção, na famosa e inspirada carta que escreveu a Adolfo Casais Monteiro (13-1-1935), na qual confere ao dia auroral de 8 de Março de 1914 o estatuto de data-viragem nos anais da história literária pessoana e portuguesa, tout court o dia do aparecimento tumultuoso e imparável da série de poemas a que deu o título de O Guardador de Rebanhos, cujo autor, Alberto Caeiro, pagão de espécie complicada e espantadamente simples, se revela, desde logo, seu mestre... Mestre que o será também, confessadamente, de Ricardo Reis e de Álvaro de Campos. Cunhando medalha para a posteridade, Álvaro de Campos proclamará com o exagero militante que competentemente cultivava: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo.» E o próprio Pessoa-ele-mesmo (se é que há um Pessoa-ele-mesmo) fará o panegírico exaltado do seu mestre, em termos igualmente extremistas: «Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto – Alberto Caeiro. Como Whitman, Caeiro deixa-nos perplexos. Somos arrancados à nossa atitude crítica por um fenómeno tão extraordinário. Jamais vimos algo de parecido com ele. Mesmo depois de Whitman, Caeiro é estranho, e terrivelmente, pavorosamente, novo. Mesmo na nossa época, em que julgamos que nada há que nos possa espantar ou que possa gritar-nos uma novidade, Caeiro realmente espanta e realmente respira novidade absoluta.» Poeta que olha o mundo com o espanto de se não espantar, satisfeito com o mistério de não haver mistério («O único mistério é haver quem pense no mistério»), gozada e militantemente fora do íntimo (que não há) das coisas («O único sentido íntimo das coisas/É elas não terem sentido íntimo nenhum»), não é de admirar que esta terapêutica simples e operacionalmente consoladora tenha desvairado o engenheiro histérico e depressivo (Álvaro de Campos), levando-o a mais esta exaltação do seu mestre: «Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada – a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade – tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.»

Inventado Caeiro, Pessoa «trat(ou) de lhe descobrir – intuitiva e subconscientemente – uns discípulos». Assim nasceram Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Reis é, como Caeiro, pagão, mas tem, ao contrário do outro, rigor e densidade: «A sua inspiração é estreita e densa», observará Campos, «o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.» A respeito deste não muito popular heterónimo, observou o seu tradutor inglês, Jonathan Griffin, que Reis «é o mais que Pessoa conseguiu aproximar-se de Caeiro». «Discípulo de Caeiro, Reis trabalha o paganismo no sentido de uma doutrina ética, em parte epicurista, em parte estóica, no entanto, a um tempo consciente e distante de um universo condicionado pelo cristianismo; uma doutrina que permita a pessoas do mundo moderno viverem, sofrendo o menos possível.» Campos é o engenheiro graduado em Glasgow, futurista, amante, panegirista das máquinas, dos portos, do mundo moderno e aerodinâmico, oscilando entre a depressão e a histeria, desprezando os homens porque não brilham nem ostentam a simplicidade eficiente das máquinas: «Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/Ser completo como uma máquina!/Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!» Jogando o jogo em que se fez mestre consumado – o faire semblant –, Pessoa traçaria, ele-próprio, o perfil magistralmente recortado de Álvaro de Campos: «Álvaro de Campos define-se excelentemente como um Walt Whitman com um poeta grego dentro de si. Há nele toda a pujança da sensação intelectual, emocional e física que caracterizava Whitman; mas nele verifica-se o traço precisamente oposto – um poder de construção e desenvolvimento ordenado de um poema que nenhum poeta depois de Milton jamais alcançou.»

O fenómeno Pessoa não nascera, é claro, do nada. A sugestão, mais, a proclamação descarada, pelo menos em relação a Caeiro, de que «jamais vimos algo de parecido com ele», de tal modo ele é «pavorosamente novo», pode levar-nos à ideia de que Fernando Pessoa insinuava uma ruptura total com o passado. Não é verdade. Em mais de um escrito, o autor de Mensagem faz questão de dizer, às vezes com ênfase quase polémica, que nunca se avança, a não ser com um pé atrás e outro à frente. Almada pretenderá, com estardalhaço exibicionista, fazer tábua rasa de um passado que o incomoda. Pessoa, pelo contrário, anota, cuidadosamente, possíveis e até prováveis influências: Baudelaire, Cesário Verde, Edgar Poe, Antero, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Garrett (que teria desencadeado nele o desejo de escrever poesia em português), Milton, Keats, Shelley, Byron, Tennyson, Wordsworth, Carlyle, Camilo Pessanha, simbolistas franceses, António Nobre e até José Duro e António Correia de Oliveira. Curiosamonte, os românticos, para ele, contam (o modernismo inglês rejeitará, em bloco, a herança romântica...). Almada quer provocar, épater, no próprio momento em que Pessoa confidencia ao seu amigo Côrtes-Rodrigues: «Passou de mim a ambição grosseira de brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeismo artístico insuportável, de querer épater.» Por isso é curioso observar como se lança, na aventura modernista, este grupo hoterogéneo: Almada, Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, António Ferro, de um lado, isto é, pessoas que «como almas, propriamente, não contam», do outro, Fernando Pessoa, brincando a contragosto, quase nauseado e sempre «gravemente atento à importância misteriosa de existir». Seja como for, junta-se aos amigos literários e funda, em 1915, a revista Orpheu, que vai, por um breve momento, agitar a poeira de uma cultura que adormece. Nisto tudo, como observará, com argúcia, Octavio Paz, «as suas aparições são isoladas e espasmódicas, golpes de mão para aterrorizar os quatro gatos da literatura oficial». O importante não será tanto este espasmódico aparecer em público, como o rio subterrâneo da criação solitária e obstinada: «Como todos os grandes preguiçosos», observa ainda Paz, «passa a vida a fazer catálogos de obras que nunca escreverá; e como acontece também aos abúlicos, quando são apaixonados e imaginativos, para não rebentar, para não enlouquecer, quase às escondidas, à margem dos seus grandes projectos, escreve todos os dias um poema, um artigo, uma reflexão. Dispersão e tensão.» Preguiçoso, talvez, mas de uma espécie peculiar; abúlico, sem dúvida, mas obstinado também e administrador meticuloso da própria glória presente e a haver, como magistralmente demonstrou David Mourão-Ferreira ao fazer o mapa revelador das estratégias de publicação seguidas pelo autor de Mensagem. Na Athena, na Contemporânea, enfim, na Presença (que o acolhe e lhe dá tratamento de Mestre), Fernando Pessoa vai colocando o melhor da sua mercadoria poética e outra, assim assegurando a letra de forma ao mais excelso do que importa salvar. Em vida, à parte os poemas ingleses, dá forma de livro apenas à Mensagem, com que concorre a um prémio do Secretariado da Propaganda Nacional, com êxito relativo (um 2°. prémio). Conta, nos dois anos que, julga, lhe restam de vida, deixar organizados os manuscritos, para publicação. Enganara-se, contudo, na elaboração do seu próprio horóscopo (versão de Raul Leal), e a ampulheta chegara ao fim: os manuscritos iam ficar no baú, preservados mas não preparados para publicação imediata, quando o seu autor baixou, subitamente, ao Hospital de S. Luís dos Franceses, no dia 29 de Novembro de 1935, aí vindo a falecer no dia seguinte.

A sua obra, cuja publicação sistemática foi iniciada em 1942 pela Ática, sob a direcção de João Gaspar Simões, encontra-se ainda hoje, apesar da volumosa parte já dada à luz, não totalmente revelada. Por outro lado, sob a direcção de Ivo Castro, procede-se finalmente à realização cuidadosa de uma edição crítica – a melhor homenagem, no fim de contas, à grandeza do poeta.

in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994


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