Nobre, António, Só, Léon Vanier, Paris, 1892
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[8], 157, [2] p. ; 16 cm
Bela encadernação, não tem as capas de brochura.
1ª edição. Com dedicatória ao amigo João de Menezes.
Raro.
«Para a memória de António Nobre
Quando a hora do ultimatum abriu em Portugal, para não mais se fecharem, as portas do templo de Jano, o deus bifronte revelou-se na literatura nas duas maneiras correspondentes à dupla direcção do seu olhar. Junqueiro — o de «Pátria» e «Finis Patriae» — foi a face que olha para o Futuro, e se exalta. António Nobre foi a face que olha para o Passado, e se entristece.
De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas. Têm subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou. Mas ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas, que tem pena de que umas não sejam corpos, para lhes poder fazer festas, e de que outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça, que tem carinhos de espontânea frase para com as árvores e as pedras, desabrochou nele melancolicamente. Ele vem no Outono e pelo crepúsculo. Pobre de quem o compreende e ama!
O sublime nele é humilde, o orgulho ingénuo, e há um sabor de infância triste no mais adulto horror do seu tédio e das suas desesperanças. Não o encontramos senão entre o desfolhar das rosas e nos jardins desertos. Os seus braços esqueceram a alegria do gesto, e o seu sorriso é o rumor de uma festa longínqua, em que nada de nós toma parte, salvo a imaginação.
Dos seus versos não se tira, felizmente, ensinamento nenhum. Roça rente a muros nocturnos a desgraça das suas emoções. Esconde-se de alheios olhos o próprio esplendor do seu desespero. Às vezes, entre o princípio e o fim de um seu verso, intercala-se um cansaço, um encolher de ombros, uma angústia ao mundo. O exército dos seus sentimentos perdeu as bandeiras numa batalha que nunca ousou travar.
As suas ternuras amuadas por si próprio; as suas pequenas corridas de criança, mal-ousada, até aos portões da quinta, para retroceder, esperando que ninguém houvesse visto; as suas meditações no limiar; ...e as águas correntes no nosso ouvido; a longa convalescença febril ainda por todos os sentidos; e as tardes, os tanques da quinta, os caminhos onde o vento já não ergue a poeira, o regresso de romarias, as férias que se desmancham, tábua a tábua, e o guardar nas gavetas secretas das cartas que nunca se mandaram... A que sonhos de que Musa exilada pertenceu aquela vida de Poeta?
Quando ele nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz consigo, mesmo no sentido da sua alegria é ele ainda, e a vida dele, nunca perfeitamente real nem com certeza vivida, é, afinal, a súmula da vida que vivemos — órfãos de pai e de mãe, perdidos de Deus, no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos. Fernando Pessoa, 1915»
in Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980. - 115.
António Nobre, Porto, 1867 - Foz do Douro/Porto, 1900
Falecido apenas com 33 anos de idade, vítima de tuberculose pulmonar, criador de uma obra que pode resumir-se a um único livro – o Só –, António Nobre pertence à geração dos «poetas novos», mas a importância do seu nome está genericamente associada ao modo coloquial e efabulado com que soube falar do seu exacerbado egotismo.
De tom claramente autobiográfico e memorialístico, este livro, recolha de várias poesias escritas sensivelmente entre 1885 e 1893, destaca-se da restante produção lírica finissecular, quase toda modelada ao gosto dos padrões renovadores dos simbolistas franceses, pelo tipo de sensibilidade evocada e pelo grau de densidade expressiva do seu lirismo intimista. A este título, o Só revela-se um exemplo de fidelidade ao património espiritual português, pois, a par da emotividade, do pendor fatalista e da experiência da saudade (orientada para as coisas e pessoas que marcaram a infância do poeta), ocorre também a presença da ironia como gesto de contestação de um mundo desacertado (um tempo degradado, uma civilização em derrocada) e de um sujeito dividido: quando fala de si no tom lírico-confessional que lhe é próprio e se autopadece e se angeliza, Nobre não se poupa a peculiares excentricidades («D. Enguiço»), disfarces de personalidade (o «Lusíada, coitado»), mistificadores desajustes («Anto», «a cobra», «o lua», etc.).
O tom fortemente pessimista do livro leva F. Pessoa a ver em Nobre a direcção regressiva da literatura fim-de-século, aquela «que olha para o Passado, e se entristece», enquanto Junqueiro seria a «face que olha para o Futuro, e se exalta». Mas, graças ao contacto renovado com a tradição oral do lirismo português, o pessimismo de Nobre não se fica pela mera forma psicológica de estar no mundo (comum à atitude mental da época); eleva-se, nele, a uma forma de estesia bem mais moderna e cativante do que todo o bem intencionado entusiasmo burguês junqueiriano: o tédio e o desencanto oitocentistas de Nobre falam quando o andamento do verso longo é prosaico, declamam quando recuperam, sob a forma dramática, a oralidade do verso, cantam e embalam a lembrar o tom das ladainhas e endechas dos nossos romances populares, trazendo ao presente, numa forma de expressão aparentemente descomprometida, a herança de todo um passado literário. No Só está, pois, o que de mais original se produziu em matéria de poesia romântica do período da decadência.
Editado em Paris em Abril de 1892 pelo livreiro de quase todos os simbolistas franceses, o Só foi mal aceite pela crítica oficial portuguesa, que surpreendia, nessa maneira de «falar» e na nova maneira de compor [Nobre aproveitou dos simbolistas certas inovações formais, como um novo tipo e cesura para o alexandrino clássico (o modelo do tritetrassílabo – três grupos rítmicos de 4 sílabas: 4+4+4) e a utilização de acentos secundários responsáveis por efeitos melódicos muito semelhantes aos da prosa], a manifestação, levada ao extremo, de uma sensibilidade patológica e um gosto excessivo por aquilo que designava de exibicionismo estéril. A fragmentação rítmica, as enumerações, os súbitos cortes, uma imaginação delirante apoiada em imagens concretas e sensíveis como a famosa «enfermaria» que serve de símile à sua dor no poema «Males de Anto», despertaram reacções negativas e ataques de vivo repúdio pelo livro cujo autor quis que fosse o «mais triste que há em Portugal».
A vida de António Nobre, orientada quase exclusivamente para a imagem de criatura excêntrica (leia-se o conteúdo do Livro de Apontamentos, que reúne notas dos anos de 1890 a 1895) e de poeta fadado para a desgraça, conhece os primeiros sobressaltos no período de Coimbra (1888). Um duplo insucesso académico leva-o a prosseguir o curso de Direito em Paris (1890). Mas Coimbra ainda lhe deixou bons amigos (de entre os quais Alberto de Oliveira) e um ou outro momento mais empolgante, como aquele que ficou assinalado pela polémica travada entre as revistas Boémia Nova e Os Insubmissos (ambas saídas em 1889), na qual António Nobre se viu envolvido. Pelos insubmissos foi acusado duas vezes de plagiar, primeiro, Guerra Junqueiro e, depois, Joaquim de Araújo.
Além do Só, António Nobre deixou fragmentos de um poema «épico-sebastianista» – O Desejado – incluído no livro Despedidas, publicado postumamente (1902), onde se mitifica, na figura de Anrique, em herói de saga e lenda. Este poema constitui um marco significativo na literatura de vocação gnósica sobre Portugal. Também aqui, O Desejado reflectiria a face entristecida de um Portugal desfigurado, contraponto da Pátria redentora e solidamente confiante de Junqueiro, mas constituiria, na sua concepção pessimisto-messiânica, um ponto de passagem importante para a visão mais radicalmente dissolvente e universal do Portugal-Quinto Império profetizado na Mensagem pessoana. Os seus primeiros tentames poéticos, também publicados postumamente, estão reunidos no livro Primeiros Versos (1921) e em Alicerces (Alicerces, seguido de Livro de Apontamentos, prefácio e notas de Mário Cláudio, Imprensa Nacional, 1983). A sua correspondência está publicada em vários volumes: Cartas Inéditas de António Nobre, Presença, 1943; Cartas e Bilhetes-Postais a Justino de Montalvão, 1956; Três Cartas Inéditas para José de Castro, 1957; Correspondência com Cândida Ramos, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1982.
Após os primeiros sintomas da doença, que se declarou em 1893, António Nobre empreendeu numerosas viagens em busca da cura, que o levaram da Suíça (1895) à América do Norte (1897), da Madeira (de 1898 a 1899) de novo à Suíça (1899), para, por fim, se extinguir em Portugal, no ano de 1900.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994