Edmundo de Bettencourt, Poemas, Portugália, Lisboa, 1963
Importante prefácio de Herberto Helder.
Poemas de Edmundo de Bettencourt A edição rapidamente esgotada, em 1963, dos Poemas de Edmundo de Bettencourt (obra completa do autor, 1930-1962), causou polémica junto da crítica, não tanto - como deveria ter sido - pela revelação de um percurso poético original e independente, mantido em silêncio durante trinta e três anos, mas sobretudo pelas palavras corajosas com que Herberto Helder apresentava o autor. Nesse conhecido e rebatido prefácio, o jovem autor de O Amor em Visita põe em relevo o carácter subversivo e precocemente surrealista da escrita de Edmundo de Bettencourt relativamente a dois movimentos, o presencista e o neorrealista, ambos, e por diferentes modos, responsáveis pelo adiamento da modernidade e dos princípio revolucionários já contidos em Orpheu. Para Herberto Helder a libertação da herança de Presença, neste autor que integrou a direção da revista coimbrã, ainda visível em O Momento e a Legenda, manifesta-se na recusa de um certo "narrativismo presencista", em benefício de um nexo "mais de sugestão do que de narração" (cf. HELDER, Herberto - "Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt", prefácio a Poemas de Edmundo de Bettencourt, Lisboa, Portugália, 1963, p. XX), onde "o encontro com a imagem" permite a apreensão de novas dimensões da realidade, pela capacidade de "fusão de antinomias", através de um processo pelo qual "o tema desaparece, ou fragmenta-se, ou somente se insinua, ambíguo ou pré-textual, apenas." (id. ib., p. XXI). Com pontos de contacto com o imagismo anglo-americano, o surrealismo francês ou a "lição rimbaldiana", Herberto Helder assinala, assim, nas composições de Bettencourt, o "insólito das imagens e metáforas, o clima sufocante, a obliquidade da emoção, a medida onírica, o delírio gelado e noturno" e a conquista de uma modernidade firmada em termos de criação que dota o poema de "existência própria, independente e suficiente como um corpo". Numa fase posterior, ainda segundo o mesmo crítico, Bettencourt terá evoluído para uma fase caracterizada por uma maior vigilância e objetividade, mas onde a "economia irónica" não despreza, contudo, "o exercício libertário da imaginação".
Fonte: Poemas de Edmundo de Bettencourt in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. Disponível na Internet:
"O poeta Edmundo de Bettencourt nasceu no Funchal a 7 de Agosto de 1899 e faleceu em Lisboa a 1 de Fevereiro de 1973. Em 1919, iniciou estudos no Curso de Direito em Lisboa, que prosseguiria em Coimbra, já na década seguinte, nunca tendo concluído a Licenciatura. De regresso a Lisboa, no início dos anos 30, depois de uma breve experiência no funcionalismo público interrompida devido à sua presença nas listas do Movimento de Unidade Democrática (MUD), ingressou na actividade da propaganda médica.
Nos tempos de estudante em Coimbra, Edmundo de Bettencourt travou conhecimento com Artur Paredes e tornou-se compositor e intérprete da canção de Coimbra, tendo sido autor de vários êxitos que o notabilizaram e lhe valeram o reconhecimento de artistas como José Afonso, que chegou a dedicar-lhe um dos seus discos. Grande parte dos fados de Bettencourt foram gravados para a importante editora Odeon. Em 1928, gravou alguns dos que viriam a integrar o volume Fados de Coimbra (1926-1930), da colectânea Arquivos do Fado, editada pela Tradisom, na que foi apenas uma de muitas participações suas em colectâneas antológicas de Fados e Baladas de Coimbra. Em 1999, a sua obra musical foi compilada no CD O Poeta Cantor, pela editora Valentim de Carvalho, incluindo as composições «Samaritana», «Saudades de Coimbra», «Menina e moça», «Saudadinha», «Senhora do Almortão — Senhora da Póvoa», «Crucificado», «Balada do encantamento», «Inquietação», «Alegria dos céus», «Fado de Santa Cruz», «Fado da sugestão», «Canção da Beira Baixa», «Fado dos olhos claros», «Mar alto» e «Canção do Alentejo». Em 2002, o Departamento de Cultura da Câmara de Coimbra instituiu o Prémio Edmundo de Bettencourt, visando reconhecer o melhor trabalho de originais no âmbito da Canção de Coimbra, no intuito de promover a criação de novos temas e o aparecimento de novos valores neste género musical.
Em Coimbra, Edmundo de Bettencourt ligou-se aos escritores que, depois de colaborarem nas revistas Bysancio (1923-1924, 6 números) e Tríptico (1924-1927, 9 números), viriam a fundar a revista presença (1927-1940, 56 números), órgão do segundo momento modernista português, de cujo título Edmundo de Bettencourt foi autor, e onde colaborou activamente entre 1927 e 1930, em quase todos os volumes, com poemas, ensaio e fotografia (fascs. 1, 2, 3, 5, 8, 10, 13, 14-15, 16, 17, 20, 22, 24 e 26). 1930 foi o ano da dissidência: a 16 de Junho, Edmundo de Bettencourt, Branquinho da Fonseca (António Madeira) e Adolfo Rocha (Miguel Torga) assinaram uma Carta Aberta, dirigida a José Régio e a João Gaspar Simões, onde anunciavam a saída da presença, rumo «à aventura, sem rei nem roque pelo mundo de todas as latitudes e longitudes», censurando os dois directores da revista pela contradição nos seus propósitos iniciais de defesa da individualidade do escritor, e acusando-os de limitação da liberdade artística, de comodismo, envelhecimento e queda no «arcaísmo estático das escolas», e de preconceitos estéticos. A Carta Aberta — de que Fernando Pessoa recebeu logo um exemplar na Livraria Portugália, fortalecendo a sua lealdade para com Régio e Gaspar Simões, que se traduziria num aumento da colaboração para a presença — originaria uma longa troca de textos entre os dois directores e os dissidentes, que se estenderia até à década de 50, culminando na autobiografia de João Gaspar Simões, História do Movimento da «presença», de 1958, reeditada em 1977 com o título José Régio e a História do Movimento da «presença». Em 1944, já depois da extinção da revista, Edmundo de Bettencourt reconstituiu os seus desígnios iniciais, sublinhando que o objectivo fundamental fora «libertar o Artista de tudo o que pudesse comprimir, falsear ou perverter as suas criações», através da demolição de «certos convencionalismos da forma, dos temas, certas exterioridades e preconceitos académicos», pois o Artista deveria encaminhar-se, «num caminho sem artifício, para a verdadeira originalidade». No entender de Bettencourt, tais princípios háviam conduzido, em particular pelas mãos de José Régio e João Gaspar Simões, à fixação de uma «larga noção de modernismo». Sobre a cisão, reforçou a ideia de que ela se havia dado por coerência e fidelidade dos três dissidentes «aos pontos de vista dos primeiros tempos», «numa atitude de protesto, contra um enquadramento do artista em fórmulas rígidas, que presença, nessa altura, estava em risco de aceitar». Apesar da dissidência, no mesmo mês de Junho de 1930, Edmundo de Bettencourt apareceu representado, ao lado de outros presencistas, no Cancioneiro coligido por António Pedro por altura do Primeiro Salão dos Independentes (dedicado a Cesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo Lima e Mário de Sá-Carneiro), e publicou, também em 1930, com a chancela das Edições Presença, o seu primeiro — e por 33 largos anos, único — livro de poesia, O Momento e a Legenda, publicitado no nº 26 da presença, de Abril-Maio de 1930, a que José Régio não deixaria de dedicar um elogioso comentário crítico no nº 28 da presença, de Agosto-Outubro de 1930.
Apesar de, segundo o seu próprio depoimento, se ter iniciado na escrita literária aos 9 anos, Edmundo de Bettencourt teve uma produção poética escassa, tendo publicado em vida apenas duas obras, O Momento e a Legenda, em 1930, e Poemas: 1930-1962 — incluindo o livro de estreia e os inéditos Rede Invisível (1930-33), Poemas Surdos (1934-40) e Ligação (1936-62) —, em 1963, pela editora Arcádia, com um decisivo prefácio de Herberto Helder. Entre 1930 e 1963, os seus textos circularam espaçadamente apenas através de dispersos saídos em revistas ou em plaquettes colectivas. Depois da dissidência, o poeta prosseguiu o caminho individual e solitário que já havia iniciado em termos estéticos, permanecendo arredado das actividades de grupo, o que, em certa medida, lhe valeria algum esquecimento e falta de valorização no mundo literário e público, até à edição da poesia de 1963. Já depois da sua morte, a editora Assírio & Alvimpreparou uma edição autónoma do volume Poemas Surdos, em 1981, e deu à estampa, em 1999, a obra completa, Poemas de Edmundo Bettencourt, com reprodução do texto introdutório de Herberto Helder.
O Momento e a Legenda, composto por poemas redigidos entre 1917 e 1930, denuncia o ambiente literário presencista em que foi produzido, em particular na narratividade e num discursivismo por vezes inflamado, próximo dos de José Régio, de Miguel Torga ou de Alberto de Serpa, bem como no tom decadentista e paúlico. No plano temático, não deixa de configurar um certo subjectivismo de expressão lírica e traços românticos — especialmente flagrante na insistência nos motivos nocturnos —, concentrado num permanente processo de interiorização de impressões e percepções no seio da «interior paisagem» do poeta, depois sujeitas a uma operação de transfiguração amplificadora. Régio falará de um «excesso da coisa a exprimir sobre a expressão que lhe é dada»(presença, 28). Há, sobretudo, uma forte atmosfera expressionista de base — a que não foram também alheias as primeiras obras de J. Régio, de Saúl Dias, de J. Gomes Ferreira, de Branquinho da Fonseca ou do próprio J. Gaspar Simões —, que se prolonga no livro seguinte, Rede Invisível, e que, em primeira instância, explica, como notou Óscar Lopes, que a expressão poética de Edmundo de Bettencourt escape, graças à fantasia transfigurante, aos moldes confessionalistas e sinceros de algum psicologismo presencista, em versos como estes: «Os silêncios do luar são / aléns de notas agudas, / são gritos paralisados / em rictos de bocas mudas!». O aprofundamento do ambiente verbal onírico e a articulação alucinatória das imagens, já no livro de estreia, deu origem a alguns versos que legitimam o juízo radical de Herberto Helder, segundo o qual Bettencourt foi «uma das pouquíssimas vozes modernas entre o milagre do Orpheu e o breve momento surrealista português»: constatação que, em 1946, Jorge de Sena — pioneiro do Surrealismo em Portugal — já fizera, sobrelevando o «supra-realismo incipiente de Edmundo de Bettencourt» (Mundo Literário, 2). Em poemas como «Hora do Exílio» ou «Reflexos», o poeta desenvolve uma imaginação livre e a-racional, a par de um universo de sugestões e referências ígneas de linhagem rimbaldiana que terão tendência a acentuar-se nos livros subsequentes, onde é já possível detectar a irrealidade sensível e a expressão surrealizante que issolarão definitivamente a experiência poética de Bettencourt da dos restantes presencistas.
Rede Invisível aprofunda o andamento sonâmbulo e hipnotizado da enunciação poética, reforçando a imagética expressionista, e prepara aquela que foi a obra mais decisiva de Edmundo de Bettencourt, Poemas Surdos, composta por 22 textos produzidos entre 1934 e 1940. Nitidamente estruturada por um Surrealismo que em Portugal ainda não se havia imposto na altura da redacção dos poemas, já que o panorama literário português da época vivia o confronto entre o Neo-Realismo emergente e a presença sossobrante,a obra demarca-se desde os primeiros versos — «Enquanto os elefantes pela floresta galopavam / no fumo do seu peso» — por um princípio analógico surrealista de evidente raiz interseccionista (veja-se versos como «Distante, lá na gruta marinha, / a sereia cantava surda nos confins do café»), com base na associação de realidades distantes, não apresentando contudo manifestações de automatismo inconsciente ou de desarticulação sintáctica, pois o surrealismo de Poemas Surdos não é, como bem observou Herberto Helder, programático ou de escola: trata-se, sim, de uma «consciência de surrealidade» próxima das de Ângelo de Lima, de Fernando Pessoa ou de Sá-Carneiro. No livro, sobressai um bestiário fantástico onde convivem elefantes e borboletas, leões e tigres, panteras e lobos, cobras e serpentes, peixes, papagaios, «aves brancas do cérebro» e sereias cantando «à porta do café», todos protagonistas de um cenário onírico que os títulos das composições em grande medida anunciam: «Nocturno fundo», «Noite vazia», «A força da fuga do olhar», «Vigília», «Asas», «Relâmpago». A visualidade e a plasticidade que caracterizam a poesia de Bettencourt desde os primeiros poemas acentua-se mediante o reforço da constituição cromática dos textos, assim como a sonoridade apurada, assente em jogos paronímicos, aliterantes e assonantes. O discurso poético preserva o tom romântico dos livros anteriores — agora temperado pelo poder sintetizante da imagem surrealista traduzido na «sempre nova faísca incendiária» da metáfora —, mas o ritmo do verso acompanha a libertação das imagens, e o verso curto e frequentemente regular dos primeiros livros dá lugar ao verso livre e longo, rumo ao poema em prosa (cf. «Poema da emoção ausente», «Atracção», «Bucólica», «Espelho»). Afastado do antagonismo então latente nas letras portuguesas, e sem qualquer preocupação de propaganda através da escrita, Edmundo de Bettencourt produziu um livro surpreendente e insólito, que a história se encarregaria de valorizar. Ligação, reunindo poemas produzidos entre 1936 e 1962, é uma colectânea mais irregular, e menos inovadora, onde se pode encontrar, com os títulos «Balada» e «Canção», a presença da actividade musical do poeta, e a confirmação de alguns dos seus traços poéticos mais característicos, que a insistência no motivo da cegueira vidente certamente condensa: «cego-me a vê-lo imagem de miragem», anunciava já programaticamente na «Paisagem verdadeira» de O Momento e a Legenda. BIBL.: BETTENCOURT, Edmundo de, Poemas de Edmundo Bettencourt, introd. Herberto Helder, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999; Câmara, João de Brito, O Modernismo em Portugal: Entrevista com Edmundo de Bettencourt (1944), reprod. fac-similada, Coimbra, Minerva, 1996."
Joana Matos Frias
Fonte: Modernismo.pt