As farpas: Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz. Lisboa. Tip. Universal, 1871-1883
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As farpas: crónica mensal da política das letras e dos costumes; Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz. Lisboa. Tip. Universal, 1871-1883
Edição original, completa. Exemplares encadernados com as capas e contra-capas de brochura originais. Primeiro número em segunda tiragem, impresso no mesmo mês, devido ao facto de ter esgotado rapidamente a primeira impressão.
Raro conjunto, belíssima encadernação em pele, meia francesa com cantos; aparado à cabeça.
A presente edição é a edição original, escrita, dirigida e editada por Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. O formato dos fascículos é de 14,5 x 11,5 cm, com capas em papel, que na primeira série eram alaranjadas. Na capa tem um desenho de Manuel de Macedo que representa o diabo “Asmodeo” olhando por um monóculo. Cada caderno tem entre 90 a 100 páginas e uma tiragem de cerca de 1500 exemplares.
As Farpas:
«Como se fundou esta publicação e não uma casa de banhos quentes. O estado do país. Proudhon, Vacherot, Veillot [sic] e Manuel Mendes Enxúndia. A nossa política. Nem somos pela Nação, nem pelo Almanaque das Cacholetas. A Carta, o Trono e o Altar. A Tribuna e o seu copo de água. A ordem e o desdém. Qual Governo convém que tenhamos. A cena política. Quem representa e quem paga. Quem está por trás do pano de fundo? Os periódicos, o romance, a poesia, o teatro. Um abat-jour para os esplendores do génio. A polícia correcional para os líricos contemporâneos. Medicações ferruginosas para a mocidade. Costumes. O marido que trabalha e o sedutor que é vadio. Encanto poético e vergonha burguesa. A nobreza, a classe média e o povo. A família e os dotes. O Amor doméstico e o Amor livre. Pobreza geral. - [ ... ]. - Os históricos, os regeneradores, os reformistas e os constituintes. Incompatibilidades, divergências, conflagrações. As públicas liberdades e as liberdades públicas. - [ ... ]. - As conferências democráticas. Que fale o proletário! Fazer conferências ou fazer fogo. Os restos da retórica e os da hortaliça. — Economias! Economias! Economias! — O que diz a pastoral e o que se diz da pastoral. Nem ela nem eles. O Catolicismo e o placet. — A crise ministerial. A câmara dos Srs. deputados. Eloquência parlamentar. Água com assúcar. Muitos apoiados. Abraços no orador. Gargalhadas na galeria. — […]»
Eça de Queirós, Póvoa de Varzim, 1845 - Neuilly, França, 1900
O romancista consagrado por Os Maias iniciou os seus estudos no Colégio da Lapa, Porto, propriedade do pai de Ramalho Ortigão, que ali leccionava francês. Os dois escritores tornar-se-iam parceiros de letras e amigos para toda a vida.
Em 1862 ingressa no curso de Direito da Universidade de Coimbra; naquela cidade travou conhecimento com alguns dos jovens estudantes que viriam a tornar-se figuras destacadas da cultura portuguesa - Antero de Quental, Teófilo Braga, João Penha, entre outros membros da chamada «Geração de Setenta» – e assistiu a diversas revoltas estudantis e literárias, destacando-se destas a «Questão Coimbrã» polémica entre os defensores de Antero e os apaniguados de Castilho.
Em 1866, Eça foi viver para Lisboa, em casa dos pais e tentou durante algum tempo exercer advocacia, profissão para a qual não se sentia vocacionado. Estreia-se nesse mesmo ano nas letras, ainda influenciado pela corrente romântica, com a crónica «Notas Marginais», publicada na Gazeta de Portugal de A. A. Teixeira de Vasconcelos.
No início de 1867 muda-se para Évora, onde dirige e redige totalmente um jornal local, O Distrito de Évora. Em simultâneo continua a publicar crónicas na Gazeta de Portugal, postumamente reunidas no volume Prosas Bárbaras. De regresso a Lisboa em Agosto, reencontra os antigos companheiros de universidade e conhece Jaime Batalha Reis. Fundado o «Cenáculo», tertúlia filosófico-literária, nasce da imaginação de Antero, Eça e Batalha o poeta satânico Carlos Fradique Mendes, cujos folhetins poéticos são publicados n' A Revolução de Setembro em 1869. Surgindo episodicamente em O Mistério da Estrada de Sintra (escrito em colaboração com Ramalho em folhetins do Diário de Notícias, quando Eça era já administrador do concelho de Leiria) a personagem ficcional Fradique Mendes nunca deixaria de estar presente na criação queirosiana: o autor publicou cartas de Fradique no jornal O Repórter, dirigido pelo seu amigo Oliveira Martins e, simultaneamente, na Gazeta de Notícias, periódico do Rio de Janeiro que contou com vasta colaboração de Eça de Queirós. À data da morte do autor, encontrava-se em provas um volume que seria publicado com o título Correspondência de Fradique Mendes, colecção das cartas saídas nos jornais e das «Memórias e Notas» publicadas na Revista de Portugal, que Eça dirigiu entre 1889 e 1892. Mais tarde, outras cartas de Fradique Mendes, deixadas inéditas pelo autor, foram publicadas no livro Últimas Páginas, de 1912, e em 1929 em Cartas Inéditas de Fradique Mendes e outras páginas esquecidas.
O ano de 1871 marcou uma viragem na carreira literária de Eça de Queirós, primeiro com o início da publicação dos volumes de As Farpas – de novo em colaboração com Ramalho – e pouco depois com o seu envolvimento nas Conferências do Casino, que, no quadro das preocupações da Geração de 70, decorrentes já de um interesse marcado pela crítica social e pela reforma de costumes. Projectadas no «Cenáculo», proibidas pelo Governo do Marquês de Ávila por serem consideradas subversivas é esse interesse socializante que inspira a adesão queirosiana ao realismo e ao naturalismo. A conferência de Eça, cujo texto se desconhece, ter-se-à chamado «O realismo como nova expressão da arte», e nela o autor terá exposto as linhas que tencionava seguir, a partir daí, para as suas composições literárias.
Em 1872 Eça de Queirós é nomeado cônsul de Portugal em Havana e parte para as Antilhas. Enceta, depois, uma longa viagem pela América do Norte, tendo viajado pelos Estados Unidos (Nova Orleans, Filadélfia, Chicago, Nova Iorque) e pelo Canadá, onde visita Montreal. Em 1874 o Diário de Notícias publica no seu «Brinde» anual, o seu primeiro conto de grande fôlego, «Singularidades de uma rapariga loira», já marcado pelo normas realistas que pretende adoptar. Mas é com O Crime do Padre Amaro, sobretudo a partir da segunda versão, que o realismo é mais patente na sua obra, confirmado com a publicação de O Primo Basílio (1880). Por esse tempo Eça, que já fora cônsul de Portugal em Newcastle e se mudara para o consulado português de Bristol, projectara uma série de novelas curtas, as «Cenas da Vida Portuguesa» com que tencionava pintar a sociedade do seu tempo, à maneira da «Comédia Humana» de Balzac e de «Os Rougon-Macquart». Dos títulos projectados ficaram inéditos A Capital!, O Conde de Abranhos e A tragédia da rua das Flores, para além de vários outros títulos que tiveram um desenvolvimento literário muito curto.
A partir da década de 1880, Eça inicia uma revisão da sua arte que o afasta, temporariamente, da causa naturalista, publicando livros que, embora continuem a crítica de costumes, são acrescentados de uma dose de fantasia necessária à realização artística do autor: casos de O Mandarim (1881) e de A Relíquia (1887). No entanto, o abandono do projecto das «Cenas da Vida Portuguesa» não fora total. As novelas curtas haviam de fundir-se num grande romance, cuja escrita continua ao longo da década, com o aproveitamento de episódios e personagens-tipo: trata-se, naturalmente, de Os Maias, publicado em dois volumes em 1888. Por esse tempo mudou-se para aquele que viria a ser o seu último posto consular, em Paris.
Em 1889 junta-se ao grupo literário-jantante dos «Vencidos da Vida», onde reencontra velhas amizades (Carlos Mayer, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins) e convive com novos amigos (Conde de Ficalho, Conde de Sabugosa, Marquês de Soveral, entre outros), continua a sua colaboração periodística, com crónicas e contos publicados em Portugal e no Brasil.
Nos últimos anos da sua vida literária, além de incursões pelo campo da hagiografia, com vidas ficcionadas de santos, Eça escreveu A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras.
Artista sempre insatisfeito com a sua escrita, Eça voltava muitas vezes aos seus textos, corrigindo-os e reformulando-os. Para além do caso conhecido de O Crime do Padre Amaro, alvo de três campanhas de rescrita, outros textos foram objecto, de forma menos consequente, de cuidados que iam do plano microestilístico ao da construção global da narrativa; obras inacabadas, como A Capital, O Conde de Abranhos, Alves & Cª. ou A Tragédia da Rua das Flores acabaram por ser recuperadas por editores póstumos e apresentadas de forma pouco escrupulosa a um público sempre ávido da literatura queirosiana. A Edição Crítica em curso procura repor o verdadeiro conteúdo dos manuscritos de Eça de Queirós e apresentar ao público os textos tal como o autor os deixou.
Centro de Documentação de Autores Portugueses, 04/2005
Ramalho Ortigão, Porto, 1836 - Lisboa, 1915
Um pouco mais velho do que Antero de Quental, Ramalho Ortigão nasceu numa abastada família nortenha de origem rural, origem essa que haveria sempre de marcar tanto o seu aspecto físico como a sua estrutura moral e que caracterizaria inclusivamente o próprio estilo da sua obra: «fica sempre, pela vida fora, na compleição, nos hábitos, nas aspirações, no paladar e nos músculos, um homem do Norte [...]» (in Augusto de Castro, «Ramalho Ortigão, seu exemplo e sua obra», estudo introdutório de As Farpas, t. I, Lisboa, 1944).
Estudou na Universidade de Coimbra, não chegando a concluir qualquer curso, após o que foi professor de Francês no Colégio da Lapa, no Porto, dirigido por seu pai. Talvez lhe tenha ficado dessa época um certo pendor didáctico e uma vontade de incutir nos seus leitores os ideais mais nobres (e por vezes também os mais ingénuos) do primeiro romantismo.
Desde 1862 revelara-se como folhetinista e crítico literário de talento no Jornal do Porto, manifestando desde logo um espírito de independência que seria frequentemente mal interpretado por uma longa série de comentadores, apostados em salientar o seu conservadorismo e reaccionarismo.
Na Questão Coimbrã, por exemplo, embora partidário da reforma das mentalidades, condenou desassombradamente, no folheto Literatura de Hoje (1866), a forma como Antero atacara Castilho, e esse opúsculo deu origem a um duelo, no Porto, com o poeta das Odes Modernas, de quem, aliás, viria a ser companheiro no grupo dos Vencidos da Vida.
Posteriormente foi nomeado oficial da secretaria da Academia das Ciências de Lisboa e mudou-se para a capital. Fez parte do grupo do Cenáculo, que cultivava tanto a boémia como a literatura e donde sairiam as célebres Conferências do Casino (1871).
Data justamente deste ano o início da campanha que, de parceria com Eça de Queirós, lançou contra a «estupidez humana e o lugar-comum»: «O único inimigo comum para os últimos dos românticos no jornalismo portuense era a estupidez humana, representada pelo honesto burguês da Rua das Flores e da Rua dos Ingleses, e era o espírito imobilizante de rotina, simbolizado no carroção veículo de família puxado a bois [...].» (As Farpas, t. I.)
Pode-se, de facto, datar de As Farpas o início da carreira literária de Ramalho [tanto as Histórias Cor-de-Rosa (1870) como Mistério da Estrada de Sintra (1870) – feito meio a brincar, de colaboração com Eça de Queirós – são ainda de feitura incipiente]. Como muito bem observa este último: «Diz-se geralmente – Ramalho Ortigão autor de As Farpas; não seria inexacto dizer – As Farpas autoras de Ramalho Ortigão.» É efectivamente com esta obra que Ramalho atinge o tom de toda a sua futura escrita.
Saídas em folhetins, de 1871 a 1882 (durante o primeiro ano tiveram a colaboração de Eça de Queirós), As Farpas não poupavam nenhum aspecto da vida portuguesa: «constituem um sistemático e quase que completo curso de sociologia do Portugal da Regeneração, observado de alto a baixo [...]» [João Medina, artigo sobre (As) Farpas in Dicionário de Eça de Queirós, org. e coord. de A. Campos Matos, Lisboa, 1988].
Com a nomeação de Eça de Queirós para a missão diplomática em Cuba, Ramalho Ortigão assegurou sozinho, de uma maneira mais ou menos regular, a direcção da publicação, que tomou uma feição mais didáctica e descritiva: «A Eça interessava o riso, não a didáctica, a farpa certeira, não a lição, a troça, não o magistério.» (João Medina, op. cit.)
A grande diversidade de assuntos cobertos pelas farpas de R. O. (política, história, religião, acontecimentos mundanos, literatura, costumes) permite ao autor pintar com «voluptuosidade de coleccionador» um grande quadro da vida burguesa e dá-lhe azo a desenvolver a inclinação pedagógica, que nunca o abandonou. Outra das características da obra é ser também uma excelente colecção de impressões de viagem – Ramalho eleva a género literário o gosto das viagens, tão disseminado no século XIX, e sob a sua pena vão nascendo lugares e atmosferas admiravelmente pintados, tanto portugueses como estrangeiros (a Holanda, a Inglaterra, etc.).
Esta capacidade de captar o pequeno pormenor, da observação rápida e incisiva, do distanciamento irónico e sarcástico, e, simultaneamente, a grande atenção ao real concreto, aliados a um temperamento extremamente sintonizado com os mínimos cambiantes do sensível, fazem dele um jornalista de talento. Guerra Junqueiro, não sem uma ponta de maldade, e numa altura em que as divergências políticas tinham afastado definitivamente os dois companheiros dos Vencidos da Vida, classifica-o apenas como «um repórter de génio». Nunca é de mais salientar a enorme influência que As Farpas viriam a exercer na opinião pública da época e no estabelecimento de uma consciência nacional, ou, melhor, nacionalista, que, entroncando na tradição neogarrettista, anunciava já o espírito do integralismo lusitano. Bastante se tem escrito sobre o conservadorismo de Ramalho, sobretudo em matéria política e religiosa, tendo-lhe muitos apontado «incoerências» de filosofia e de comportamento.
Espírito eminentemente íntegro, manteve-se toda a vida fiel aos ideais românticos em que se formara e que se foram traduzindo de diversas formas em contacto com a experiência e os acontecimentos, o que lhe permitiu ser republicano e revolucionário numa dada fase da sua vida e defender com igual vigor e quixotismo a memória de D. Carlos e da Monarquia, numa fase posterior.
É sobretudo a luta que o caracteriza, luta incansável contra todos os obstáculos que impedissem a concretização desses ideais. E é enquanto protagonista deste combate que a sua obra nos toca e atinge a sua perenidade: «Eu sou de uma idade transitória, vim obscuramente num período de transformação, com uma ala de sapadores, e pertenço à pequena companhia antipática dos bota-abaixo.» (in As Farpas, t. I)
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990