António José Branquinho da Fonseca, O Barão. Novela. Ilustrações de Júlio Pomar. 1959
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66 pp.; 24 cm. B.
Exemplar da edição especial de 140 exemplares numerados e assinados pelo autor e pelo ilustrador; exemplar n.º 118
Branquinho da Fonseca, Mortágua, 1905 - Lisboa, 1974
Poeta, dramaturgo e ficcionista, filho do polémico escritor Tomás da Fonseca, frequentou os primeiros anos do curso liceal, em Lisboa. Com dezasseis anos vai para Coimbra, onde terminou os estudos secundários e o curso de Direito em 1930.
Em 1935, foi nomeado Conservador do Registo Civil em Marvão, tendo desempenhado as mesmas funções na Nazaré, em 1936. No ano de 1943, é provido no lugar de Conservador do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães, de Cascais, onde já residia e onde lançou a experiência das bibliotecas itinerantes, o que foi aproveitado pela Gulbenkian, que o convidou para organizar e dirigir o Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas, dessa mesma Fundação, a partir de 1958, tendo sido o seu primeiro director, até à data da sua morte.
Branquinho da Fonseca foi um presencista. Para o compreendermos, deveremos lembrar a principal característica desse movimento: a total liberdade de criação artística, movida pela necessidade de cada qual poder assumir a sua própria verdade e sensibilidade, donde a assumpção de um individualismo subjectivo bastante descomprometido com o social e o político. A dor de homem isolado conduzi-lo-á a uma lúcida auto-análise e a um confessionalismo directo e extremamente transparente, num discurso concreto mas simultaneamente onírico, sempre autêntico: «ai daquele que se perde de vista a si próprio», confessou-o.
Se observarmos de perto o quase omnipresente narrador-personagem, não poderemos deixar de ver nele um auto-retrato, do qual se destaca uma permanente hesitação e insegurança, em termos comportamentais, que chega a atingir a desistência, associada à inadaptação a um mundo social que lhe é hostil e que o arrastou para o cepticismo político-social: «todos (os caminhos) vão dar a Roma». Compreendemos, assim, a sua introversão egocêntrica e amargurada, pois «o meu reino é uma ilha». A timidez e cautelas que manifesta perante os vários companheiros de viagem (e perante a mulher, a que nunca acederá) impediram-no sempre de os contrariar ou de se lhes opor, permitindo-nos talvez apreender as razões, tão visíveis na sua obra, da sua extrema susceptibilidade quanto a sentimentos como o de se sentir ridículo ou facilmente vexado: «desprezarem as coisas... mas de que sou escravo, é a pior humilhação... o maior vexame». Para se defender de todos estes constrangimentos e escravidões, o caminho encontrado parece ter sido o do distanciamento das coisas, com a subsequente atitude racionalista e irónica que perpassa em todos os seus textos, devendo o aparente amoralismo e indiferença ética, por outros detectados, mais não ser do que uma resultante óbvia dessa mesma atitude. Na verdade, se o confronto entre personagens é só inicialmente esboçado, é porque as situações conflituosas não devem fazer parte das perspectivas e atitudes do escritor, acabando por diluí-las, ou mesmo anulá-las, por meio de palavras e gestos socializados, tantas vezes através da bonomia, indiferença ou humor, o que não quer dizer que não mostre hostilidade contra os preconceitos políticos e ideológicos que, na altura, faziam eco, mas que considerava inadequados porque sub-repticiamente falsos e enganadores.
Essa mesma habilidade estendeu-a contra a cidade e contra a própria família, enquanto espaços fechados geradores de hipocrisias, dos quais «Curva do Céu» é um símbolo, na figura da criança moribunda, a quem apenas concede o poder de sonhar. Atendendo agora à dinâmica e características globais, quer da obra ficcional, quer do próprio A., dir-se-á que não haveria outra alternativa que não fosse a da criação, como elemento nuclear, de um narrador omnisciente e participante, para se poder assumir como testemunha (e até mesmo como inspector) – «encontro-me a observar-me as reacções... as ideias» – perspicaz e inteligente e que desempenhasse plenamente as funções de condutor interno dessas mesmas narrativas. É que isso permitir-lhe-ia coordenar e ajustar os processos narrativos e introduzir neles as componentes da personalidade artística de Branquinho, mormente a necessidade de confissão e comunhão com o leitor, por meio de uma linguagem directa, coloquial e luminosamente transparente, desnudando intimidades psíquicas (sobretudo através do monólogo e da divagação) e que sentimos como totalmente sinceras e verdadeiras, até porque o destinatário é também o próprio escritor.
Associado a este narrador-personagem, encontraremos habitualmente um companheiro de viagem, formando com ele uma dupla de solitários, por vezes dissimulados, mas sempre interactivos e desencadeadores da acção. A instituição destes dois pólos narrativos facilita a cisão fictícia de um todo, que engendra um esboço de confronto dramático. Num desses pólos, encontraremos uma unidade consubstanciada no viajante mental, o escritor que tem a função de se transcrever e de testemunhar o outro, mas confessadamente sedentário: «para pensar bem é preciso estar quieto», utilizando um discurso metonímico, essencialmente referente de um mundo quotidiano e natural, profundamente racional e lógico, porém estranhamente voluptuoso, elegante, lírico e cândido, numa justaposição de frases eminentemente coordenadas por adversativas – necessárias à premente introdução do inesperado, invulgar e insólito – e tantas vezes expressionistas pela captação subjectiva e deformadora do pormenor que habita o mundo real. No outro pólo, encontramos o mundo da acção, o do viajante dinâmico que se exprime através do diálogo ou dos seus comportamentos, retratando um eu apaixonado, onírico e dramático, gerador de situações enigmáticas, plurissignificantes e intrinsecamente simbólicas. Não será pois de estranhar que esta personagem possa ser, por um lado, agressiva, prepotente ou intimidante, ao começo, e tornar-se depois gentil e afável, mesmo tímida e ingénua, para que se possa estabelecer, entre os dois pólos, a comunhão e uma ponte. É nesta comunhão, «agarrando-lhe no braço, já familiarmente», que os dois vectores se associam num sistema muito bem urdido e coerente, que só uma experiência vivencial própria poderia ter construído. Esta dupla toma existência em vagabundagens nocturnas, no meio das sombras e em espaços sem nome, labirintos e encruzilhadas perdidas algures em solares arruinados, onde o «de repente» e o inesperado brotam a todo o momento, formando um tecido de sonhos, uma paisagem kafkiana, mas sempre real porque psicologicamente coerente e verdadeira.
Sendo a obra do A. constituída por poesia, teatro, romance e contos, só estes denunciam um nível de maturidade que atinge a perfeição, destacando-se O Barão, Rio Turvo e O Involuntário. Ler estas narrativas é ler, de facto, o essencial de Branquinho. Quanto aos restantes trabalhos, quase poderíamos considerá-los «apontamentos» de uma fase experimental, produto de uma verdura da juventude, o que não impede que neles se manifestem positivas realizações do vanguardismo pós-modernista.
De qualquer forma, Branquinho não constrói histórias de amor, como já tem sido sugerido, onde a procura da mulher se torna tema. Os desencontros amorosos são, na verdade, episódicos. Os verdadeiros temas são o da auto-confissão e o do encontro, comunhão e entendimento entre as duas entidades já assinaladas, as duas instâncias de um único «eu» perante o inelutável que será o da mulher etérea, botão de rosa, vestal, «um astro que circundo que é só meu e não habito», reconfirmado pelo «busco...aquela a quem ama a minha alma». Dir-se-á um poeta sem corpo, ainda na «eterna juventude», fechado no seu casulo. Nele, poderemos ver a paixão mas nunca o amor, daí que as suas narrativas sejam uma «viagem / que não começou nem acabou».